sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Os melhores

O país do futebol

O que faz dos brasileiros os melhores
jogadores de futebol
do planeta: criativos,
irreverentes, indomáveis e campeões


Oscar Cabral
O futebol brasileiro é o melhor do mundo. Isso ninguém contesta. Nem os números. Ganhamos cinco Copas e poderíamos ter vencido outras tantas, se não fôssemos tão desorganizados. Sempre que houve organização – com o comandante Paulo Machado de Carvalho, em 1958 e 1962, com Zagallo e sua tropa, em 1970, e com o estudioso Carlos Alberto Parreira, em 1994 – trouxemos o caneco. Além disso, obtivemos dois vice-campeonatos (no Brasil, em 1950, e na França, em 1998) e dois terceiros lugares (1938, na França, e 1978, na Argentina). São conquistas que colocaram o Brasil no topo do ranking da Fifa.
Se os números não mentem, a mística da camisa amarela muito menos. Portanto, somos os melhores, não há dúvida. Quando entramos no campo das explicações para essa superioridade é que são elas. Há de tudo. Dizem até que Deus é brasileiro e dá uma mãozinha. Uns acham que é a formação étnica do povo, a miscigenação. Outros estão convencidos de que se trata de um traço cultural, uma suposta "malandragem". Há quem responsabilize o clima, sabe-se lá por quê, como se o calor servisse de estímulo à correria e não ao descanso. Misturam-se aí conceitos, preconceitos, ideologias e muito, muito chute. A única explicação realmente inquestionável para a supremacia brasileira nos gramados é uma palavra rasteira e bastante concreta, que irrita a intelectualidade e os poetas: massificação. O Brasil joga bem porque joga muito. É o que acontece com os americanos no basquete, os romenos na ginástica e os russos no balé clássico. É a massificação do futebol que determina o destaque que o país tem nesse e não em outros esportes. Joga-se futebol em boa parte das cerca de 2 100 praias do nosso litoral, nos terrenos baldios, nas quadras da escolinha suburbana ou no asfalto das cidades. Calculam-se em 30 milhões os brasileiros que praticam informalmente o esporte. São 580 000 os atletas amadores e profissionais organizados em 13 000 clubes. No Brasil, a bola é o brinquedo que todo garoto ganha, antes mesmo de dar os primeiros passos. O maior fabricante de brinquedos do país produz mais de 1 milhão de bolas não oficiais por ano. A Inglaterra inventou a Football Association, mas também inventou o colégio interno, de onde não dá para fugir em busca da pelada no campinho da esquina. No Brasil, a bola rola antes e depois da aula, quando não rola durante.


Alberto Sartini
A bicicleta de Leônidas da Silva: invenção de um gênio que se destacou num mar de craques
Essa massificação começa em casa e prossegue na escola, onde sempre há quadras, mesmo precárias, para a prática do vôlei, do basquete e do futebol de salão. Não é à toa que no vôlei e no basquete temos algum brilho internacional. Mas, diferentemente das outras modalidades, em que a rede e a trave, a cesta e a tabela são essenciais, o futebol tem uma prática simples, além de poucas regras, fixas e maleáveis. Pode-se praticá-lo no corredor de casa, no pátio do prédio ou num ginásio. As traves podem ser dois postes ou um par de sandálias. As linhas são dispensáveis. Qualquer criança sabe quando a bola sai do campo ou entra no gol. Uniformes são supérfluos quando um time pode jogar com camisa e o outro sem. O número de praticantes pode variar, dependendo da disponibilidade de atletas e das dimensões do campo. A bola pode ser a oficial, a de plástico que desvia com o vento ou a de borracha, que quica sem direção. Pode ser de meia, recheada de trapo, uma laranja, papel embolado e, no desespero, uma lata ou mesmo uma tampinha de cerveja.
A prática extensiva e intensiva do esporte, como sabem muito bem os dirigentes olímpicos, proporciona o surgimento de ases, que o meio aperfeiçoa e lapida. É um fenômeno conhecido: a quantidade produz qualidade. É por isso que Michael Jordan é americano, não tailandês, e Nijinsky é russo, não brasileiro. Estão aí, como fruto da quantidade do futebol, a qualidade de nomes como Didi, Baltazar, Garrincha, Ronaldo e Leônidas. Como explicar que, nos anos 30, Leônidas da Silva, o "Diamante Negro", inventasse uma jogada em que o atleta chuta em gol estando de costas para a meta, de cabeça para baixo e em pleno ar? A famosa bicicleta de Leônidas exige muito mais que a evidente criatividade do gesto. Cobra uma elasticidade só possível a grandes atletas modernos. Não surpreende que dessa massa de craques tenha surgido a perfeição: Pelé. O rei não foi fabricado em laboratório. Destacou-se no meio da multidão de boleiros. É o que aconteceu com os titulares de Zagallo, tricampeões em 1970.


Florença, Itália: há séculos a turba já corria atrás da bola nas ruas das cidades européias, na terça-feira de Carnaval
"Olhar de Capitu" – Massificação, portanto, é a única razão para tamanha fartura de craques. A ginga e a irreverência do futebol brasileiro são o nosso sotaque no esporte. Os alemães jogam marchando e a seleção norueguesa aposta no chutão. O brasileiro dribla até a trave, se puder. Para que os antropólogos e sociólogos não se decepcionem, esse jeito encantador de jogar é aquilo mesmo que eles escrevem. É o reflexo da cultura de um povo que dança nos terreiros e salões e rebola na economia informal para sobreviver. Aplicado ao futebol, esse traço faz a diferença na busca do resultado pela via mais plástica, inventada e coreografada.
Essa história começou no dia em que o futebol deixou os clubes grã-finos e ganhou o campinho de pelada dos subúrbios. Em História Política do Futebol Brasileiro, o historiador Joel Rufino procura contar como o esporte bretão caiu no gosto popular e se espalhou pelo país. Segundo ele, desde a Idade Média as turbas exaltadas corriam atrás da bola pelos becos e vielas das cidades européias toda terça-feira de Carnaval. A criação da Football Association, em 1863, na Inglaterra, foi uma maneira de botar regras no jogo e tirá-lo do alcance das massas. Foi com esse espírito que ele desembarcou no Brasil pelas mãos de Charles Miller, em 1894. Mas, já nas primeiras décadas do século XX, os "ingleses" caboclos perderam o controle do esporte para a galera, e clubes de esquina começaram a aparecer em todo o país.
Não dá para negar que a agilidade com os pés – e pernas – é valorizada na cultura popular do país. Na gafieira, na capoeira, no futebol. A gente subalterna, nesta nação de ex-escravos, teve de desenvolver uma grande capacidade de dissimulação para vencer as barreiras e ludibriar a autoridade. Essas características podem ser um fator determinante do nosso jogo balançado, que se contrapõe à cintura grossa dos europeus. Garoto da cidade de Campos, no escaldante norte do Estado do Rio de Janeiro, Didi já sabia que sob o sol de 40 graus a bola é que devia correr. Lançador perfeito, o meia Didi aprendeu a bater na bola com efeitos que a desviavam do inimigo sem fugir do destino. "Chute oblíquo e dissimulado, como o olhar de Capitu", definiu o jornalista Armando Nogueira. Aplicado à cobrança de faltas, esse chute resultou na "folha-seca", o tiro em que a bola sobe muito, ganha efeito, descai abruptamente e entra rente ao travessão, para desespero do goleiro.
Gérson, o meia da seleção de 70, que fumava dois maços de cigarros por dia, estudou nessa escola. Para não correr, aprendeu a fazer lançamentos de 40 metros. É a criatividade, que muitos chamam de malandragem. Criativo ao limite, Garrincha será lembrado para sempre como um dos maiores malandros que o futebol brasileiro já produziu. Na Copa de 62, no Chile, da qual o Brasil saiu campeão, Garrincha surpreendeu com dribles desconcertantes. Um jornal de Santiago perguntou em manchete: "De que planeta saiu Garrincha?". Saiu dos campinhos de pelada do interior fluminense, onde nasceu, solto como um passarinho, da mesma maneira e ao mesmo tempo que outros milhões de garotos pobres ou ricos, de norte a sul do país. Sem o altíssimo grau de massificação que o futebol alcançou no Brasil, teríamos no máximo uma seleção como a da Romênia: habilidosa, mas que consegue reunir no máximo um ou dois craques medianos. Ou como a da Dinamarca, que bate um bolão, mas por falta de opção jogou com dois irmãos no time que levou à França, em 1998. A baixa taxa de reposição de talentos fez do bom time nórdico uma equipe sem brilho nesta Copa de 2002, ao contrário do Brasil. 

(Matéria publicada na VEJA on-line, em 30 de junho de 2002).
http://veja.abril.com.br/especiais/penta/p_048.html 

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